domingo, 7 de maio de 2017

O beijo


 Martha Medeiros


     Na primeira página de um site, o convite: “Você viu? Mulheres fazem fila para beijar rapaz!” Adivinha se não era carnaval em Salvador. Estavam lá diversas fotos do garanhão beijando uma, depois a outra e a mulherada em fila aguardando a vez. Parece divertido, mas não é novidade: acontece em tudo o que é festa aberta, em qualquer época do ano. Todo mundo beijando todo mundo, uma delícia de descomprometimento. Nem evolução, nem involução, apenas mais uma coisa que se dessacraliza diante dos nossos olhos.
     O beijo.
     Dizem que o primeiro beijo não se esquece, e eu realmente nunca consegui esquecer do meu primeiro, e olha que eu tentei. Foi um desastre, um desacerto, uma tentativa malograda de encaixe, até que veio o segundo e, aí sim, choveram estrelas. Desde então, o beijo passou a fazer jus à sua fama de grande astro de um encontro amoroso.
Para quem, como eu, não chegou a viver esta onda de banalização do beijo, para quem beijava só quando estava apaixonado, ou, vá lá, com um ficante de vez em quando (e não mais de um por noite, e tampouco ficar todas as noites, pois tínhamos que sossegar o pito, como diziam nossos pais), enfim, para quem não viveu este oba-oba, o beijo segue sendo a confirmação de uma atração recíproca. E personalizada. Especial como raros momentos o são.
     Paixões se iniciam de repente. Você troca e-mails com alguém sem a menor intenção de rolo, e então, sem mais nem menos, passam a flertar um com o outro, o jogo da sedução começa. Ou você é amiga de um cara sem jamais passar pela cabeça ir além da amizade, mas um belo dia, do nada, pinta um clima, que confusão. Ou então você é apresentada a uma pessoa numa festa e se encanta à primeira vista, e a partir daí fica mentalizando estratagemas para um segundo encontro e, quem sabe, um terceiro e um quarto. Principalmente um quarto.
     Bom, há várias maneiras de se iniciar um romance, mas enquanto o primeiro beijo não acontece, existe apenas uma intenção, uma possibilidade, um quem sabe. Olhares, telefonemas, torpedos, tudo isso não passa de aquecimento, e pode esfriar antes mesmo que aconteça alguma coisa. Que alguma coisa? Ora, do que estamos falando aqui, criatura? Do beijo!!!! Quem não se lembra do final de Cinema Paradiso? Nenhuma cena de sexo nos emocionaria daquele jeito.
     O primeiro beijo de uma nova relação: quando será, e onde? Quando ele vier me deixar em casa? Dentro do cinema? No meio de um papo, inesperadamente? Ah, que cruel e excitante é esta vida. Aguardar pelo primeiro beijo, aquele beijo que vai atestar: sim, não era uma fantasia, ele estava mesmo a fim de mim todo este tempo, e eu, nem se fala. Se não estava, fiquei. O beijo, uau! O detonador de toda história de amor, ou de uma ilusão de amor, que seja.
     Depois vinha o desenrolar dos acontecimentos, mas deixemos pra lá o depois. Não é importante. O que nos deixava ligadinhas era a expectativa do primeiro beijo, que valia por um carimbo, um atestado, um apito do juiz: começou, tá valendo. Então algo se iniciava.
     Sou ficcionista, mas não a ponto de delirar. Era bem assim, crianças. 





MEDEIROS, Martha. O Globo. 2007.



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